setembro 03, 2012

Abstração do concreto


Tenho uma certa aversão a este fenómeno que faz com que tudo o que é concreto se transforme, mais cedo ou mais tarde, em abstrato.
Aquilo que, num momento, vemos passar em frente aos nossos olhos e faz o nosso coração estremecer; o que nos faz experimentar as sensações mais extremas, que nos questiona os planos; aquilo que está no concreto dos dias, no chão que pisamos; o momento que nos abre o sorriso sem pedir duas vezes. Um abraço, um toque, um aceno atento, uma pergunta que nos desarma. O olhar de uma criança tão simples que nos deita por terra.
No momento a seguir, nada disso é matéria. Transforma-se em memória, em pensamento, numa ideia. É tão abstrato que é impossível esbarrarmos contra ele. Envolvemo-lo em nós, na tentativa de o eternizar de alguma forma.
Mas não o podemos agarrar. Travamos lutas interiores, trazemos tudo ao pensamento, repetidamente, para não perdermos nada. Mas invariavelmente, as experiências que, caso pudéssemos travar o relógio, prolongaríamos sem hesitar, transformam-se em memórias poeirentas.
Sopramos-lhes o pó de longe a longe, a sorrir, e damos conta que já muito tempo passou – e que, por mais tempo que passe, nada se há-de repetir: cada experiência é única e tem o seu espaço reservado em nós.
Mas talvez seja isto Viver a partir do coração: saber retirar o abstrato do concreto e crescer com ele – ainda que apeteça muito enroscarmo-nos no canto a lamentar-nos do azar de nada ser eterno.

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