Para quê?! (ai Jesus que isto ficou grande)

Hoje estavam a dar Novos Testamentos à porta da escola.

Eu, que vinha com um sono tremendo, vi ao longe dois homens com um monte de livrinhos na mão e pensei: “olha, estão a dar agendas. Vou ficar com uma, pode ser que dê jeito”.

Pareciam mesmo agendas! Com capinha azul, pequeninas… por isso estão a ver o meu espanto quando olho para a capa e vejo “Novo Testamento. Salmos, Provérbios. Este livro não será vendido”.

Ri-me cá para mim, a pensar: “fogo, andam mesmo desesperados. Até já andam a impingir bíblias como quem distribui folhetos”.

Continuei o meu caminho em direcção ao Pavilhão de Educação Física, que é ao fundo da escola. Pelo caminho, ia olhando para os arbustos, dois ou três Novos Testamentos lá pousados, a apanhar chuva; mais um no chão, todo encharcado e cheio de terra; um pousado num banco, também à chuva. E quando ia a entrar para a aula, vejo um grupo de rapazes em roda, um com o livrinho aberto, a dizer: “E disse Jesus aos seus discípulos: recolhei os pedaços que sobraram…”. E riam-se todos, muito divertidos.

Cheguei ao balneário e estavam duas ou três com os seus livrinhos na mão, ainda meio espantadas por lhes terem dado aquilo…

Eu decidi entrar na onda. Peguei no meu livrinho, que tinha posto na mochila, virei-me para uma amiga minha e disse-lhe: “Vamos cantar um salminho antes da aula? Aposto que vai correr melhor”.

Ela olhou para mim, riu-se e virou-se para as outras: “estão a ver? Até a Maria, que é praticante, goza com isto”.

Eu ri-me. “É, eu também pratico desporto, sabes? Às vezes não vou porque está chuva, mas costumo ir ao ginásio! É a mesma coisa, de vez em quando dá-me e pratico um bocadinho de religião”. Ela riu-se. Como já sabe que eu sou meia avariada, deixou-me estar e começou a falar doutra coisa (acho que foi dos Deolinda. E realmente foi uma boa escolha).

Eu depois fiquei a pensar.

Conheço umas quantas pessoas que ficariam escandalizadas com o que eu vi hoje de manhã. Tenho a certeza absoluta que ficariam também escandalizadas com o facto de eu própria, que sou cristã, gozar com aquilo.

“AI MEU DEUS! A Palavra de Deus está ali no chão, toda molhada! Aposto que tem frio.”

“AI MEU DEUS! Estão ali uns sujeitos a gozar com Jesus Cristo, nosso salvador! Haviam de ser castigados.”

“AI MEU DEUS! Estão a gozar com a religião e com as pessoas que acreditam nisto! Ai cruzes, credo canhoto!”

A mim não me faz confusão nenhuma. Tal como se dessem agendas, de certeza que iria encontrar umas quantas pelo chão. Assim, é na mesma um livro que está no chão. A Palavra de Deus é outra coisa.

Agora o que me faz confusão é a razão pela qual deram Novos Testamentos à porta da escola. É que convenhamos, toda a gente sabe, no nosso país, o que é uma Bíblia. E não é por terem oferecido uma pequenina à porta da Escola que alguém vai mudar a sua vida… É papel e tinta gastos para nada. Quem tem algum interesse nisso provavelmente já tem uma Bíblia em casa.

Tive curiosidade. “Para que raio é que isto serve?”

Então abri na primeira página, e tinha lá um carimbo: “Os Gideões Internacionais”. Virei a página e tinha uma informação. Dizia assim:

“Os Gideões Internacionais são uma Associação de homens de negócios e profissionais de diversas categorias, cristãos, unidos, para serviço e companheirismo, em mais de 180 países. A finalidade da Associação é tornar conhecido o Evangelho de Cristo em todo o Mundo, a fim de que todos cheguem a conhecer o Senhor Jesus como seu Salvador Pessoal.

Com a ajuda de muitos amigos cristãos de diferentes igrejas, os Gideões têm distribuído mais de 1.4 bilhão de Bíblias e Novos Testamentos em hotéis, motéis, hospitais, instituições penais, entre as forças armadas, estudantes e pessoal da área médica.”

E fiquei a pensar… bem, afinal é muito mais papel e tinta do que eu pensava! 1.4 Biliões?

Parece que estão mesmo empenhados em expandir a Palavra de Deus. Que causa nobre! Mas… que frutos é que isto dá?

“Pega lá uma bíblia. Já fiz a minha boa acção do dia. Agora lês isso e a tua vida passa a fazer sentido.”

E está a Palavra de Deus anunciada. “Lê, que é bonito. A minha avó leu, e gostou. Por acaso também já vi umas críticas, todas positivas”.

O que é isto?

Tudo bem que deve ser com boa intenção.

Mas…

Mas!

Mas tudo! A Palavra de Deus NÃO É um livro! Não se anuncia a Palavra de Deus DANDO LIVROS! Anuncia-se a Palavra de Deus mostrando o que ela é para nós, como a vemos, como faz sentido em nós. Anuncia-se a Palavra de Deus mostrando, no concreto dos dias, que ela faz diferença na nossa vida.

Anuncia-se a Palavra de Deus descodificando simbologias, explicando o difícil de entender. Anuncia-se a Palavra de Deus no olhar, na liberdade que trazemos dentro e nos medos que derrotamos. A Palavra de Deus actua se a deixarmos actuar! Não se lermos um livro inteiro, porque no-lo deram à porta da escola!

Eu duvido muito que aquilo tenha feito diferença para alguém. Se fez, ainda bem! Ainda bem. Mas é preciso um coração muito disponível para que alguém se deixe transformar assim. Temos muitas manhas, muitas! Muitos pré-conceitos, e das duas uma: ou o que diz na bíblia faz mesmo sentido para nós, e isso resulta de uma caminhada de fé consistente, ou então olhamos para ela como “o livro da religião”, e a religião é uma grande seca.

Não concordo. Não concordo que desperdicem assim recursos. Gasta papel, gasta tinta, gasta tempo. E (acho eu) sem grande sentido. E se aqueles senhores que estavam às oito e meia da matina à porta da minha escola fossem dar de comer a quem tem fome? Poupavam o dinheiro do papel e da tinta e da encadernação e tudo, e eram realmente importantes para alguém…

Não sei, é um exemplo. Só acho que é um desperdício. Investir na parte menos importante do processo é um desperdício. Livros compramos todos; agora a segunda parte, a de os entender, a de torná-los importantes…

Aí sim, entram os professores. E é aí que são precisos.