junho 11, 2009

Mais Fernando Pessoa.


«Por entre a casaria, em intercalações de luz e sombra - ou, antes, de luz e de menos luz - a manhã desata-se sobre a cidade. Parece que não vem do sol mas da cidade, e que é dos muros e dos telhados que a luz do sol se desprende - não deles fisicamente, mas deles por estarem ali.
Sinto, ao senti-la, uma grande esperança; mas reconheço que a esperança é literária. Manhã, primavera, esperança - estão ligados em música pela mesma intenção melódica; estã0 ligados na mesma alma pela mesma memória de uma igual intenção. [...]
Lembro-me de repente de quando era criança e via, como hoje não posso ver, a manhã raiar sobre a cidade. Ela então não raiava para mim, mas para a vida, porque então eu (não sendo consciente) era a vida. Via a manhã, e tenho alegria; hoje vejo a manhã, e tenho alegria, e fico triste. A criança ficou mas emudeceu. Vejo como via, mas por trás dos olhos vejo-me vendo; e só com isto se me obscurece o sol e o verde das árvores é velho e as flores murcham antes de aparecidas. Sim, outrora eu era daqui; hoje, a cada paisagem, nova para mim que seja, regresso estrangeiro, hóspede e peregrino da sua apresentação, forasteiro do que vejo e ouço, velho de mim.»

Fernando Pessoa, Livro do Desassossego de Bernardo Soares.

Um comentário:

Artesanato BARRO RÚSTICO disse...

nada pode ser mais belo e mais dolorido que este trecho do "desassossego"... belíssimo... tristíssimo...