Chegámos a Veneza ao fim da tarde do dia 24 de Setembro. Quando saímos da estação, deparámo-nos com um cenário que nunca tínhamos visto em mais lugar algum: a estrada principal era um canal de água, os transportes públicos eram barcos e as paragens flutuavam. Não havia qualquer corrimão, protecção alguma. A água estava apenas vinte centímetros abaixo do chão, e uma onda maior inundava imediatamente as margens.
Estava a chover. A Raquel marcou a sua posição: “É lindo estar a chover em Veneza!”. Não concordei muito, porque acho sinceramente que aquela terra já tinha água que chegasse, mas não me adiantava achar nada. Abrigámo-nos como pudemos, e fomos para a paragem do vaporetto, o “autocarro” daquela cidade. Os transportes em Veneza são ridiculamente caros, mas não havia volta a dar: o nosso Hostel, aquele que havíamos marcado mentalmente antes de partir, não era na ilha principal. Portanto ou pagávamos 36 euros para andar por pouco mais de um dia ou íamos a nado. Engolimos a seco e pagámos.
Desta vez a marcação mental resultou muito bem: ficámos num hostel muito agradável, género pousada da juventude, com uma sala comum com óptimo aspecto e ao lado de uma pizzaria a sério, onde vemos as pizzas a serem feitas para nós! Mais uma vez engolimos em seco com o preço, mas no dia seguinte vingámo-nos no pequeno-almoço. Comemos como já não fazíamos há dias!
As aventuras começaram logo que saímos do hostel. Entrámos no vaporetto em direcção à piazza de S. Marco, a mais turística da cidade, e mal chegámos perguntei: “Onde está o guia?”. As caras delas responderam logo. Ninguém o tinha. O “guia” é um livro que os meus padrinhos me emprestaram antes de vir para cá, um guia da American Express sobre a Itália. Tinha sido nosso companheiro fiel nos outros dias, guiando-nos pelas ruas das várias cidades e ensinando-nos muitas curiosidades históricas, culturais and so on.
Tinham passado só 10 minutos desde que tínhamos saído do hostel, portanto não havia de estar longe. Voltámos, e quando chegámos à paragem do vaporetto encontrámos no banco um bilhete que dizia algo do género “Encontrei um guia e trouxe-o comigo. Liguem para o número tal tal tal”. Sentimo-nos num filme. “Ohh que simpático, bora lá ligar, não deve estar muito longe!”. Ligámos. Era aparentemente um telefone fixo e “a senhora doutora não estava”, estava fora da cidade e só podíamos ligar à noite.
Fora da cidade. Ligar à noite. Quem é que se lembra de tirar um guia TURÍSTICO de uma paragem de autocarro, levá-lo e deixar um número fixo a cuja casa só chega à noite? Aparentemente, a dona do bilhete quis fazer a boa acção do dia, mas não parou para pensar que se era um guia turístico o dono devia ser alguém de passagem pela cidade, e que ia dar por falta dele muito rapidamente. Também não se lembrou que poderia ter escrito no bilhete “deixei o livro no café tal tal tal, vão lá buscá-lo”, seria uma boa acção mais inteligente. Ou podia simplesmente tê-lo deixado no lugar! Enfim.
Sem poder fazer mais nada pelo nosso amado guia, deixámo-lo raptado e iniciámos a nossa visita pela cidade. Desta vez, não tínhamos um plano traçado com os pontos de interesse. Portanto decidimos seguir todos os grupos turísticos que encontrássemos cujo guia falasse inglês. Ouvíamos umas explicações, descobríamos mais pontos interessantes. Foi uma boa estratégia.
A piazza de S. Marco, quando lá chegámos, estava toda inundada. A noite anterior tinha sido de tempestade, como pudemos comprovar pelo barulho que a chuva fazia no telhado do hostel. Reparámos então que inundações são o pão nosso de cada dia em Veneza. As pessoas estavam apetrechadas com galochas ou simples sacos plásticos nos pés. Tinham sido montados estrados para os desprevenidos andarem sobre as águas.
Com o passar do dia, o sol apareceu e foi secando as ruas. Sempre atrás das multidões, vimos praças, pontes, monumentos bonitos. Acabámos por comprar um mapa simples e barato, com os pontos mais interessantes.
Um condutor de gôndula que cantava "É uma casa portuguesa com certeza" ficou escandalizado com a personagem que é a Ana Almeida.
Depois de comermos num canto feio uma pizza bastante barata (depois de procurar MESMO muito por algo barato para comer), metemo-nos no barco e fomos até à praia.
A praia de Veneza foi uma desilusão para nós. A areia, preta, não tem ar limpo nem convidativo. Decidimos não tentar o mar, devido ao relativo frio e à nossa relativa preguiça para descalçar e pôr os pés naquela areia. Voltámos, então, depois de um gelado bem saboroso, a entrar no vaporetto.
Rendemo-nos à preguiça e às paisagens e passámos o resto da tarde a andar de barco. Pareceu-nos importante aproveitar o bilhete que nos tinha custado os olhos da cara! E percorremos toda a cidade de Vaporetto, enterradas nas cadeiras de plástico e de máquina fotográfica sempre em punho.
Acabámos por voltar a terra firme ao fim da tarde, em busca de uns “caprichos” que estávamos dispostas a comprar para nós mesmas, como recordação da nossa Road Trip. A Raquel bem procurou por aqueles tais “colarzinhos lindos com máscaras”, que acabou por não comprar (teve o azar de encontrar “os mais lindos de sempre” de manhã, e de manhã achamos sempre que “havemos de encontrar mais barato”).
Durante todo o dia tínhamos também andado a babar-nos para aquelas típicas imitações do I (coração) NY, que incrivelmente existiam aos montes em todas as cidades que visitámos. Mas tínhamos prometido a nós mesmas que íamos ter uma sweat t-shirt quentinha a dizer “I (coração) Venezia”!
Todos os vendedores que abordámos nos diziam o mesmo: “Quindici euro!”. Quinze euros por uma camisola é razoável, mas não para quem já gastou rios de dinheiro em viagens. Portanto fizemos um pacto: se encontrássemos camisolas por dez euros, comprávamos.
Quando estávamos prestes a desistir, um “monhé” (aqueles marroquinos chatos que andam atrás de nós a dizer para comprarmos coisas) viu uma de nós a olhar para uma camisola (não me lembro qual de nós foi e não me apetece perguntar-lhes, apesar de estarem mesmo à minha beira) e quase que nos enfiou a camisola no nariz. “Dodici euro!”. Doze?!
Os nossos olhos brilharam. Toda a gente que sabe que quando um monhé diz “doze” não quer dizer realmente doze. E aquele estava com cara de quem precisava muito de fugir a alguma coisa (não sem antes vender o maior número de coisas que conseguisse). Depois de muitos tamanhos, cores, modelos vistos, lá decidimos as camisolas que íamos trazer. Conseguimos puxar o preço para os benditos dez (o coitado do rapaz ainda insistiu que doze era um óptimo preço em Veneza, e realmente tinha razão, mas o desespero fez com que aceitasse).
Camisola quentinha por dez euros: check.
Continuámos o nosso caminho: fomos a casa dos papás, o McDonalds, para ir à casa de banho, e acabamos por jantar uma deliciosa pizza margarita por €1,5 a fatia (não no Mac, como é óbvio). Claro que comemos duas, apesar de serem ambas gigantes, só mesmo por estarmos felizes com o preço.
Já de barriga cheia, o que decidimos fazer antes de apanhar o comboio, para qual ainda faltavam cerca de duas horas? Andar de vaporetto, claro.
Metemo-nos no primeiro barco que apareceu para ver Veneza by night. Andámos, andámos, andámos, até que o “autocarro aquático” começou a ficar vazio e deixámos de ver as luzes da ilha. De repente, lembrámo-nos que não tínhamos olhado convenientemente para o trajecto que faríamos, nem sequer para os horários dos vaporettos. Quando demos por nós, estávamos muito próximas do cemitério – uma ilha gigante, claro – no último barco da noite. Ou seja, quando chegássemos não teríamos como voltar.
Típico. Primeiro, um guia turístico raptado. É verdade, não contei, entretanto ligámos para a pessoa que quis fazer a boa acção do dia e atendeu-nos uma senhora que morava em Mestre – bastante afastado da ilha turística – não podia ir ter à estação de comboio e queria que fôssemos até casa dela, vejam só, de TÁXI. Quando viu que não podíamos de todo ir de táxi, àquela hora, a um sítio desconhecido (por razões monetárias, temporárias e de segurança), insistiu para que fôssemos buscá-lo “quando voltássemos a Veneza”, na semana seguinte ou assim. “SOMOS TURISTAS!!!!”. “NÃO VAMOS VOLTAR A VENEZA PARA A SEMANA!”. E depois de muito pedir que mandasse o dito livro por correio para Roma, disse que se “pagava”. A bateria no telemóvel e o vocabulário italiano da Ana esgotou-se. Só há uns dias voltámos a ligar (ou melhor, o Ivo, o nosso paizinho, ligou) e disseram que sim, enviavam por correio. Chegou ontem um aviso de entrega, amanhã vou buscá-lo aos correios. Venezianos simpáticos.
Bem, continuando. Primeiro, um guia turístico raptado. Depois, o isolamento no cemitério de Veneza e a impossibilidade de apanhar um comboio ainda naquela noite. Estava a correr optimamente.
Mas, mais uma vez, a nossa carinha de gato do Shrek safou-nos. Agora que olho para trás, é inacreditável a nossa sorte durante esta viagem. Os capitães daquele navio (merecem realmente este nome) foram os nossos anjos da guarda e conseguiram que estivéssemos na estação de comboio à hora marcada.
Quando nos disseram que aquele era o último barco da noite, devem ter visto na nossa cara o pânico estampado. “Mas… não há mesmo mais nenhum?!”. Explicámos a nossa situação. Um deles disse: “Nós vamos estacionar o barco e eu fico em tal sítio (muito longe da estação) mas o não sei quantas (era o motorista) vai para não sei onde porque mora lá. Podem ir com ele e lá apanham um vaporetto nocturno até à estação”.
Foi exactamente isto que eu ouvi. Não sei quê, não sei quantas, “podem ir com ele”. Ficámos radiantes. Mais uma vez, a sorte estava connosco, por muita asneira que fizéssemos.
Fomos realmente estacionar o barco com os dois senhores simpáticos. O motorista levou-nos realmente pelas pequenas ruas de Veneza, entre curvas e contracurvas, até à paragem de vaporetto mais próxima. Parecia que estávamos num labirinto, em contra-relógio. Foi um andar quase a correr para apanhar o último barco. E quando chegámos à paragem… o barco estava a partir.
Dissemos mal da nossa vida. Mas desta vez, estávamos no centro, e as nossas pernas ainda aguentavam mais um esticão até à estação de comboio.
O motorista lá foi à sua vida, depois de um dia de trabalho e depois de uma real boa acção. E nós chegámos a tempo ao comboio.
A nossa road trip foi isto, um misto de tudo. Alegria, boa disposição, algum cansaço e uns pequenos azares mas doses industriais de sorte que compensaram tudo. Também algum engenho - já lá diz o povo que a necessidade o aguça bastante.
Quando partimos de Veneza, na madrugada do dia 26 de Setembro, decidimos que não visitaríamos Siena no dia seguinte, como estava programado. Estávamos demasiado exaustas para conseguirmos aproveitar alguma coisa. Acabámos por visitá-la na semana passada, e aproveitámos bem melhor a cidade. Muito bonita, na minha opinião.
Assim terminou a nossa viagem de sonho, aquela que “um dia” faríamos. É estranho falar disto no passado, porque sempre foi uma coisa que queria muito fazer “no futuro”.
E nisto traduz-se também a minha experiência Erasmus. Está a passar de uma maneira incrivelmente rápida, e sinto-me diferente. Um diferente que me preenche, e que me faz ter vontade de ficar cá para sempre. Não que não tenha saudades dos meus – morro delas, aliás – mas esta independência, esta responsabilidade de ter de escolher por mim mesma faz-me muito bem. E não é nada teórica, sinto-a bem.
Finalmente, o fim deste relato gigante. A partir de agora, o blog pode voltar ao normal. Sinto-me feliz por não ter cedido à preguiça. Quando há muito para contar, é difícil transformar tudo em palavras. E na verdade, não há palavras que descrevam estes dias.
Como diz a Mariana, “os momentos importantes são inesquecíveis, não precisamos de fotografias que os lembrem” – isto para refutar a teoria da Ana e da Raquel de que não sobreviveríamos sem as 2747 fotos que tirámos. Concordo, e sei que também não precisamos de palavras que os guardem. Mas gosto de saber que tenho estas palavras, que vão estar cá sempre para me lembrar os pequeninos momentos que no fim marcam tanto.
Estas já estão.
Relato gigante sobre a road trip mais fantástica de sempre: Check.
6 comentários:
Vocês pagaram 36€ cada uma para andar de barco????
Inundações em Veneza são o pão nosso de cada dia, principalmente quando chove ;) é o problema de viver num pântano
Juro-te que pensei na frase "Camisola por 10 eiros: cheked" antes de a ler... lol
Não comeram nem foram expulsas do Mac... já não está mal... :P
Mais uma vez gostei bastante da descrição... Gosto muito da maneira como escreves ;)
Agora vou comentar seriamente (o mais que conseguir ;) ) aquilo que escreves no final...
Como sabes segui alegremente a historia da Road Trip... Se é passado e a contas assim com tanta alegria e energia só quer dizer que valeu a pena... (fui tentando remar contra a tua preguiça para ver acabavas mais depressa)
A primeira vez que aqui escrevi falei de escolhas (podes ir confirmar)... as tuas levaram-te a Roma, Florença, Milão, Veneza. É natural que essas escolhas te façam crescer e te tornem diferente... as pessoas mudam e ficam mesmo diferentes enquanto vivem ;)
Conheço bem essa "independência" de que falas... e faz-nos bem ;)
Se já consegues decidir, para a próxima escolhes tu o local para o café (eu disse que ia tentar, mas não é fácil ser sério :P)
Também conheço essa sensação de que as palavras e as fotos não são precisas para nos lembrar-mos , mas garanto-te que quando as vires (fotos e palavras) daqui a anos vais viajar em sonhos para esses dias ;)
Beijo,
Vitor
P.S.- tenho um desses guias maravilhosos de Roma... eheheheeh
Grande relato!!
Só um reparo: monhé é um indiano chato. Um marroquino chato é um "kétapeti?".
só mais uma coisinha que me esqueci...
a senhora pode não ter sido muito inteligente ao levar o livro, mas pelo menos foi simpática a ponto de to enviar de volta...
não sei se algum tuga se dava a esse trabalho ;)
bjs
Pára de me difamar! O senhor estava a mandar um beijinho para a incrivel personagem que é a Ana Almeida :p
realmente é o que parece pela foto... ;)
sabias que hoje também tivemos uma Veneza em Portugal???
Lisboa transformou-se em Veneza hoje de manhã... (não tou a gozar... só faltaram mesmo os barcos com turistas)
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