Acerto os cantos do monte de folhas brancas que foram a minha vida durante uma semana. As letras pretas cravadas no papel, cheias de siglas e códigos que nunca ansiei decifrar, estão cravadas agora no meu cérebro – ou assim espero. Abandono-as na cama larga onde me deito. Ainda não me sinto com coragem de as arrumar no armário. Talvez mais uma pequena revisão antes de dormir.
“É já amanhã” – digo a mim mesma, com tom de quem sentencia o fim do mundo. É, sim, o fim deste mundo que criei contra a minha vontade, numa semana que passou a ferro e fogo. Vêm-me como flashes imagens dos dias que inauguraram o novo ano. E peço em silêncio para ter sido só uma excepção: “Por favor, que o meu ano ressuscite amanhã”.
CPU, HDD, RAM, Cache, SO, Debugs. DRAM, SDRAM, RDRAM. Bits, bytes, chaves privadas, chaves públicas, chaves siméticas. Floppy disks. Assembly, Fortran, C, C++, Java. Criptografia, Steganografia. Data Bases relacionais, ad oggetti, reticulares, hierárquicas. Client-server, peer to peer. Patterns. Codecs. Formatos. Luzes e sombras da nova economia. Redes. Comutadores, transmissores. ISDN, ADSL, redes numéricas. Fibra óptica, modems, gateways, nós, pacotes. Ethernet, Token Ring.
Horas pesadas que me roubaram o tempo e as entranhas. Que me anestesiaram o que parecia fazer latejar o coração. A certa altura, já não sentia. E não fossem as fases parvas, de gargalhadas imparáveis, as fases de discussão acesa, as fases de lentidão cerebral – todas partilhadas com elas, sempre ao meu lado – poderia afirmar com toda a certeza que durante esta semana foi a informática que me viveu a mim.
As noites foram igualmente agitadas. Perseguições por corredores de supermercados, roubos de computadores no meio de musicais, correrias para apanhar aviões. Acordava mais cansada do que adormecia – se é que isso é possível. Uma coisa é certa: esta cama larga nunca chegou a ficar fria demais. As noites eram aquecidas pelo calor que partilhávamos umas com as outras, e por muito que a informática nos apressasse os cabelos brancos, sabíamos que mal nos deixássemos estar “engrolhadinhas” a vida voltaria a fazer sentido.
Não escondo: esta foi a semana em que os portos seguros que deixei para trás fizeram mais falta. Como se costuma dizer, “pela boca morre o peixe”… nestes dias, só queria ser um “pacote” daqueles que circulam pela rede: esses conseguem chegar a Portugal em fracções de segundo. Mas nem tudo está à distância de um clique…
O que há de fundamental na vida não está dentro de um computador. Como diz a Mariana, “aquilo que faz sempre as pessoas ficarem tristes… são as pessoas”. Mas depois completou automaticamente: “e ficarem felizes também”.
Não gosto de fugir ao lado difícil da vida. Às vezes, uma vida sempre feliz e despreocupada parece tentadora. Mas estarmos sempre a distrair-nos do que dói só adia a dor. A dor dói mais quando é empurrada para o mais fundo de nós, para não nos incomodar.
Esta semana só queria a minha família, o abraço aquecido pelas suas lágrimas mornas. Queria mais do que um telefone frio que não deixa passar aquilo que vai para além das palavras. Queria viver tudo, até aquilo que à primeira vista ninguém tem vontade de enfrentar.
Não foi possível. Afinal, nada é exclusivamente bom… fazer Erasmus tem destas coisas também. E hoje, neste quarto cuja única luz vem dos nossos ecrãs de computador, deixo-me fazer oração. Depois de uma semana, finalmente tenho Tempo.
E finalmente foste para a Inglaterra…
Parece impossível que tenha acontecido assim, sabes, avô? Quando falavas desse lugar, parecia um sítio longínquo, onde só iam os “indivíduos” que tinhas conhecido há muitos anos. Já estava habituada a que todas as histórias terminassem com um “já foi para a Inglaterra, coitado”. E acreditava com todas as forças que era o teu sentido de humor que falava quando dizias que também não havia de faltar muito para ires para lá. Afinal, por muito que dissesses que tinhas todas as doenças do mundo, nunca tinha conhecido ninguém com tanta energia…
Parece que te estou a ver a pedir-me para te ajudar a pôr a mesa – teimavas sempre em pôr a colher grande, do arroz, no lugar da colher de sopa da avó. Já sabias que ela se ia zangar. Mas parecia que tinhas um gosto especial nisso. Aliás, naqueles envelopes que davas a todos os netos no dia dos anos – a cada ano mais mil escudos, para termos a nossa idade em contos – escrevias sempre “Guida” a marcador grosso, porque ela era “a gorda”! Nunca interpretei isso como falta de amor… não sabias ser sem brincar!
Acho que conseguiria isolar um conjunto de palavras, histórias e brincadeiras que repetias semana a semana, Domingo a Domingo – eras um homem de hábitos, e eu sabia sempre o que esperar de ti. Adorava as tardes na garagem onde tinhas as tuas coisas, todas encaixotadas. Ensinavas-me a desenhar com os materiais que usavas “quando trabalhavas”, e eu nunca percebia muito bem que raio é que fazias. Mas era divertido, e isso chegava-me.
Acreditava quando dizias que os fuinhas gostavam muito de ti, e não associava isso ao facto de lhes estares sempre a dar comida. Dizias que tudo era formidável, e eu também acreditava. Sabia que no fim da refeição tinha sempre um “chicolate” à minha espera, que punhas sempre ao lado da televisão para eu comer tudo.
Quando começavas a frase “E depois…”, eu já sabia decor como a completar. “…veio o Sr. Almeida. O sr. Almeida era muito maaaau, bateu-lhe no tutu. Eu bem vi, estava a chover!”.
Os anos foram-te desgastando, e a doença levou-te muita coisa… é verdade, avô, não consegui conter as lágrimas na última vez que estive contigo. As tuas mãos enrugadas cheiravam a Nívea que a avó, a “gorda”, tinha acabado de te pôr. A tua respiração estava exaltada, parecia que gritava que querias de novo a tua casa, que sempre prezaste tanto… tinhas as mãos mornas, e foi bom senti-las nas minhas uma última vez.
Hei-de ter sempre esta imagem de ti: tu, mais os teus recortes de jornais, as caixas com os medicamentos organizados e o teu sentido de humor. O típico “já lavaste os pés?” antes da refeição e o teu andar ritmado, condizente com a energia que tinhas em ti.
Serás eterno em nós. Até sempre…
Tua, Né
2 comentários:
Depois de ler tudo atentamente nem sei bem o que escrever, mas antes de ir para os bits e bytes que são a minha vida (afinal há quem faça vida disso) só te quero dizer uma coisa...
Conseguiste pôr o Sr. Engenheiro com a lágrima no canto do olho e a lembrar-se dos dois velhotes para os quais muita vez corri a gritar "avô"...
Obrigado ;)
Um beijinho grande e boa sorte pra logo ;)
Não há muito que se possa dizer, mas não te esqueças teu avô estará agora mais feliz do que nunca e que tu tb te encontrarás um dia com ele :) Um beijinho e um forte abraço.
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